Ana Maria Machado
Primeiros Passos
Meu nome é Ana Maria Machado e eu vivo inventando histórias. E dessas que eu escrevo, algumas viram livros. Adoro o meu trabalho. Ainda bem, porque acho que não ia conseguir viver se não escrevesse.
Já fui professora, já fui jornalista, já fiz programa de rádio, já tive uma livraria e nesse tempo todo nunca parei de escrever.

Eu e meus pais, em 1942.

Manguinhos, 1952. Sítio como o do Pica Pau Amarelo, só que com mar na porteira.
Nasci e me criei no Rio, mas quando era criança costumava passar os verões na praia de Manguinhos, no Espírito Santo. Ficava quase três meses por ano à beira do mar, com meus avós, junto à natureza e às tradições.
Como não havia eletricidade, todas as noites as pessoas se reuniam para contar e escutar histórias. Cada adulto tinha a sua especialidade, contando os mais variados tipos de história. Tenho certeza que sem os verões em Manguinhos eu escreveria bem diferen
Aprendi a ler sozinha, com menos de cinco anos. Depois de deixar minha professora e minha mãe assustadas (acharam que poderia fazer mal!), comecei a mergulhar em leituras como o Almanaque do Tico-Tico e os livros de Monteiro Lobato. Foi nesse período que encontrei o livro que marcaria a minha vida para sempre: Reinações de Narizinho.
No meu aniversário de sete anos, ganhei de presente um marcante e inesquecível diário. Era um fichário preto, de três furos, onde eu podia guardar tudo o quisesse e trancar para ninguém ver.

Eu, aos 5 anos, em 1947
Na primeira página tinha um desenho lindo, feito por encomenda a um pintor argentino chamado Carybé. Nesse tempo ele ainda não tinha virado baiano nem ilustrador de Jorge Amado e Garcia Márquez. Saí escrevendo furiosamente no diário.

Pesca de arrastão em Manguinhos
Era uma boa aluna e vivia ganhando prêmios – em geral livros, da família. Uma das minhas redações foi tão elogiada e premiada que a mostrei em casa.
Meu tio Nelson, que estava lá, levou o texto para o meu tio Guilherme, folclorista – e essa acabou sendo a minha estréia literária.
Devidamente assinado e aumentado, por encomenda da revista Folclore, saiu publicado meu Arrastão, sobre as redes de pesca artesanal em Manguinhos. O meu orgulho supremo foi que a revista não falava que o texto tinha sido feito por uma menina de doze anos.
Pintando o caneco
A minha adolescência foi repleta de livros, que me proporcionaram grandes prazeres e descobertas. Ficava abismada com o jeito de escrever de grandes autores e cronistas, como Rubem Braga.
Na escola, em casa e com meus amigos, estava sempre rodeada de gente que também gostava de curtir a vida tendo bons livros ao seu lado.

Rubem Braga


Eu e Aloísio Carvão.
Estava no científico quando comecei a estudar pintura, primeiro na Escolinha de Arte do Brasil, depois no Atelier Livre do Museu de Arte Moderna.
Foi nesse curso que tive o privilégio de ter aulas com Aloísio Carvão, por quem guardo até hoje um carinho muito grande.
Nunca alguém tinha sido tão exigente comigo e ao mesmo tempo me dado tanta força, me preparando para a dureza de ser artista.
Chegou a hora de fazer vestibular, e eu não tinha idéia de que curso escolher. Na dúvida entre química e arquitetura, acabei optando por geografia, pensando que aprenderia assuntos como geografia econômica ou entenderia de modo mais profundo a sociedade brasileira. Mas a faculdade me desapontou, com a exigência de muito conhecimento exato. Para mim, no fundo, nada disso importava ou teria utilidade. O que eu queria mesmo era trabalhar como pintora.


Pintando nos idos da década de 70.


Conversando com algumas crianças.
Menos de um ano depois, cansada de examinar rochas e eixos de cristalografia, mudei de curso e fui estudar letras. Também comecei a trabalhar como professora, dando aulas de português, latim e francês (em inglês!) numa escola americana. Mesmo com tantas atividades, ia seguindo com a carreira de pintora, fazendo exposições individuais e coletivas.
De repente, tudo ficou mais sério. Me formei e fiz mestrado, casei com o médico Álvaro Machado, mudei de sobrenome e de cidade, indo para São Paulo. Passei a escrever artigos para a revista Realidade e a Enciclopédia Bloch, além de traduzir textos e continuar pintando.
Nesse período nasceu meu primeiro filho, Rodrigo. Também ganhei uma amiga para a vida toda, a escritora Ruth Rocha, que virou minha cunhada.


Eu e Ruth em Berlim, 1994.
Recebi certo dia uma ligação da Editora Abril, me chamando para escrever em uma nova revista voltada para crianças, e que se chamaria Recreio. Não acreditei no convite, afinal era professora universitária, nunca tinha feito nada parecido. Mesmo assim, insistiram em mim e acabei topando. A revista fez um sucesso imenso, e acabou abrindo caminhos para a nova literatura infantil brasileira.
Aquele Abraço
Em 1969, o país estava em plena ditadura. Já vivíamos sob o peso do Ato Institucional no 5, que fechou o Congresso, instituiu a censura e consolidou a tortura.
O segundo semestre desse ano foi particularmente difícil para mim. Fui presa, tive colegas, amigos e alunos detidos.


Casa de meus pais em Manguinhos, descrita no livro ‘Tropical Sol da Liberdade’.
Quando o ano acabou, estava desmontando minha casa e fazendo malas para deixar o país. Anos depois, escreveria sobre essa época no romance “Tropical Sol da Liberdade”.


Em Paris, brincando com meu filho Rodrigo.
Fui para Paris em janeiro de 1970, onde trabalhei como jornalista na revista Elle e como professora em Sorbonne. Também trabalhei numa biblioteca, cuidando do setor sobre a América Latina, fiz dublagem de documentários e participei de exposições de pintura. E tratei de aproveitar a oportunidade para estudar e aprender bastante.
Virei aluna da Ecole Pratique des Hautes Etudes, onde reinava soberano o famoso semiólogo Roland Barthes. Em suas aulas, ele chegava a encher um anfiteatro com 800 estudantes, mas também orientava em separado a um pequeno grupo de 20 estudantes. Depois de uma entrevista, ele me chamou para pertencer a esse grupo.


Cartão de identificação como aluna de Barthes.
Sob a sua orientação, escrevi a tese de doutorado que acabou virando livro – “O Recado do Nome”, que trata da obra de Guimarães Rosa. Nesse período, em abril de 1971, nasceu Pedro, meu segundo filho.


Em Londres, com meus filhos Rodrigo e Pedro.
Estava com dois filhos pequenos em um país estranho, tinha o trabalho, a tese e a casa para cuidar. Mesmo assim, não parei de escrever as histórias infantis. Já estava definitivamente viciada em escrevê-las. Quando não as mandava para a revista Recreio publicar, guardava na gaveta o que escrevia.
Surgiu uma oportunidade e fui para Londres, trabalhar na BBC. Ficaria por um ano e meio. O fim do exílio estava próximo…
Agora para ficar
A volta ao Brasil veio no final de 1972. Concentrei-me na imprensa e fui trabalhar no Jornal do Brasil. De repórter passei a chefe do departamento de jornalismo da Rádio JB, onde fiquei durante sete anos. Entrevistei um monte de gente, orientei mais um monte, e ganhei muita intimidade com um tipo de linguagem oral e acessível.


Com Caetano Veloso, na Rádio Jornal do Brasil, em 1976.


Carta do escritor Carlos Drummond de Andrade falando do livro.
Meu primeiro livro infantil, “Bento-que-bento-é-o-frade”, foi publicado cinco anos depois da minha chegada. Ele fazia parte da coleção Livros de Recreio. Outra série foi montada pela Editora Abril – Histórias de Recreio. Nesta, foram selecionados os contos de maior sucesso da revista, divididos por autor. Os meus títulos foram “Severino faz chover”, “Currupaco Papaco” e “Camilão, o Comilão”, cada um com quatro histórias.
O primeiro prêmio viria logo a seguir. Em 1978, participei de um concurso, sob pseudônimo, e acabei ganhando o prêmio João de Barro, com “História Meio ao Contrário”, que depois também ganhou o Jaboti.
Além da publicação do livro, essa premiação desencadeou uma série de convites de editores para publicar mais textos meus, e fui tirando o que tinha guardado nas gavetas. Acabei ganhando mais prêmios e me dedicando cada vez mais a escrever.


Malasartes, 1990.
Em 1979, um dia quis dar um livro a uma sobrinha que fazia anos. Bati perna por todas as livrarias de Ipanema e Copacabana e não achei um único livro infantil que me agradasse! Percebi logo que estava faltando uma livraria especializada, onde as crianças pudessem ler e encontrar bons livros. Com a ajuda de uma sócia surgiu a Livraria Malasartes, onde eu ficaria por 18 anos.


Eu e Lourenço, em 1989.
Em 1980, passei por um momento decisivo dentro da Rádio JB. Diante de uma ordem para demitir um terço da redação, optei pela minha própria demissão. Com o jornalismo devidamente abandonado, mudei de vida. Iniciava um segundo casamento, com o músico Lourenço Baeta.
Passei a cuidar de minha livraria e me dediquei mais a escrever, dando seguimento a um romance que começara dois anos antes, “Alice e Ulisses”.
Mil Histórias
Em seguida, o que houve foi uma verdadeira surpresa para mim: comecei a ganhar prêmios, de melhor livro nacional do ano, de melhor livro do biênio, e muitos outros.
Até mesmo do exterior veio o reconhecimento, com o Prêmio Casa de las Américas, em Cuba, ao qual concorri num gesto de ousadia, com um livro infantil (“De Olho nas Penas”) competindo com literatura adulta, e venci. Foi muito emocionante perceber que aquilo que eu gostava tanto de fazer chegava a outras pessoas.


Lançamento do livro


Eu e minha filha Luísa.
Em 1983, nasceu Luísa. No mesmo ano, tomei coragem e publiquei meu primeiro romance para adultos, “Alice e Ulisses”, muito bem recebido pela crítica.
Ao mesmo tempo, meus livros foram começando a ser traduzidos no exterior, primeiro nos países escandinavos e, em seguida, na Alemanha, na França e na Espanha. Paralelamente, fui passando a fazer palestras para professores pelo interior do Brasil e desenvolvi cursos e seminários sobre promoção de leitura no exterior.
De 1986 a 1988, fizemos uma coisa maravilhosa: deixamos a cidade grande e nos mudamos para uma casinha pequenina em Manguinhos. Uma verdadeira volta as raízes. Uma vida muito modesta e recolhida, em contato direto com o mar e a natureza. Luísa ia a escola com os filhos dos moradores locais, Lourenço compunha e tocava, eu escrevia.


Feliz com a tranqüilidade de Manguinhos.


Passeando no Regent´s Park, Londres – 1990.
De Manguinhos para o mundo… Em fim de 1989, me ofereceram um novo contrato com a BBC e voltei para Londres, onde passei oito meses e terminei de escrever o romance “Canteiros de Saturno”. Pouco depois de voltar ao Brasil, em meio a muito trabalho, tive problemas de saúde muito sérios. Por um longo tempo toda minha vida ficou direcionada a enfrentar essa situação, ajudada pelo carinho de tanta gente que me quer bem e apoiada pelo meu trabalho.
Os últimos anos tem sido principalmente de coisas boas, que as outras a gente esquece. Dois netos maravilhosos: Henrique em 1996 e Isadora em 2000.
Nesse mesmo ano, ganhei também o prêmio Hans Christian Andersen, coisa que me trouxe muita alegria. É incrível saber que um júri internacional, sem nenhum brasileiro, analisou o conjunto de minha obra e concluiu que eu merecia ser considerada a melhor autora do mundo..


Junto da estátua de Hans Christian Andersen, em Nova Iorque.


Com o presidente Fernando Henrique Cardoso, recebendo a Ordem do Mérito Cultural.
Em 2001, tive uma surpresa maravilhosa: ganhei o maior prêmio literário nacional, o Machado de Assis, que a Academia Brasileira de Letras confere por toda a obra de um autor.
Uma honra dessas ainda veio se somar as condecorações.
Recebi a Medalha Tiradentes, da Assembléia Legislativa do Rio, e a Ordem do Mérito Cultural, da Presidência da República. Uma verdadeira consagração. Puxa, nem com uma varinha mágica uma fada-madrinha podia me dar isso…
Tempo de colheita
Os últimos anos têm sido uma espécie de tempo de colheita, depois de décadas plantando.
Em 2003 entrei para a Academia Brasileira de Letras, na vaga de Evandro Lins e Silva – a primeira vez que foi eleito para a ABL um autor com obra significativa para o público infantil.


Com o Dr. Evandro Lins e Silva durante cerimônia de premiação do Prêmio Machado de Assis na ABL em 2001
O meu discurso de posse está disponível (num arquivo em formato PDF) para quem quiser ler. Em pouco tempo eu estava fazendo parte da diretoria da instituição, da qual fui secretária geral de 2009 a 2011 e presidente em 2012 e 2013.


Na cerimônia de posse na ABL
Por um lado, essas novas responsabilidades me tomaram muito tempo e atrapalharam minha dedicação à escrita. Mas também me propiciaram a oportunidade de ser útil no apoio a programas sociais de incentivo à leitura de literatura e a bibliotecas. Pude multiplicar de maneira mais eficiente as ações que já vinha desenvolvendo isoladamente nessas áreas, com escolas, hospitais, feiras.
Com o respaldo da Academia, realizei um sonho: um projeto para formação de auxiliares de biblioteca em comunidades recém-pacificadas no Rio de Janeiro . Pude promover encontros de leitores e escritores em toda parte.
Acho justo que todas as pessoas possam ter acesso a tudo o que a leitura pode nos trazer.
Também foi possível adotar uma linha de ação internacional na divulgação da literatura brasileira. Isso é uma coisa que eu sempre tinha feito, individualmente, desde os anos 1970, em reuniões, conferências e mesas-redondas pelo mundo afora Mas na ABL foi possível institucionalizar esses projetos, por meio de convênios com universidades estrangeiras, que passaram a estudar nossos autores e publicar trabalhos sobre eles.
Acadêmica ou não, continuo muito dedicada às questões de incentivo à leitura. E muito interessada em ler e escrever. Tenho novos prêmios para conjunto de obra : entre outros, o Príncipe Claus da Holanda, o Iberoamericano de Literatura Infantil, o de Cultura do Rio de Janeiro, o da UBE, vieram se juntar a meus três Jabutis.


Visitando uma escola
Meus leitores crescem, se espalham, se multiplicam por toda parte, o que me enche de alegria. Cada vez mais meus livros são traduzidos em outras línguas e já estão em 25 países. Tanto os infantis quanto os romances e ensaios. São bem recebidos pela crítica e pelos leitores. Só posso ficar contente e agradecida. Afinal, é para o leitor que um autor escreve. Só quando alguém lê é que o livro se completa.
A fábula da tiete e o urso
“Se devo a algum escritor o fato de escrever, sem dúvida é a ele. Aquela coisa que García Márquez conta que sentiu quando leu Kafka: já que se pode escrever desta maneira, então eu também quero.
Eu tinha 13 anos, estudava no colégio Mello e Souza, de Ipanema.



Eu recortava as crônicas, relia até decorar. Aos sete anos, tinha ganho de Lídia e Newton, amigos de meu pai (e dele), um caderninho para um diário, ilustrado por outro amigo comum, Carybé. Gostava de ler desde que me entendia. Mas só lendo Rubem que nasceu em mim o desejo da escrita. A tentação de garimpar dentro da língua nossa, de todo dia, aqueles brilhos ocultos que ele sabia mostrar. Papai me apresentou a ele, fiquei muda. Foi uma relação sempre esquiva, ao longo dos anos. Quase sempre, ele parecia um urso, só grunhia de vez em quando. Mas de repente me dizia frases únicas, de presente. Uma vez me esperou na saída do colégio e eu fiquei de castigo porque perdi a hora do almoço, batendo papo num banco de praça. Às vezes conversávamos por telefone. Numa noite de festa, Caymmi cantando lá dentro, ele me falou um tempão na varanda, sobre as estrelas, o mar, meus olhos. Nunca esqueci. Acho que eu era meio apaixonada por ele e não sabia. E um dia de setembro, as estrelas, o mar, meus olhos.
Nunca esqueci. Acho que eu era meio apaixonada por ele e não sabia. E um dia de setembro, levei-lhe uma cesta de pitangas que comemos deliciados na cobertura onde começava a morar, guardando os caroços para futuros plantios. Mas escrever como ele era impossível.
Desisti. Fui ser pintora.Aí não tinha a menor vergonha de lhe mostrar meu trabalho. E quando fiz minha exposição individual, foi de Rubem o texto de apresentação. Apesar do padrinho, acabei voltando à escrita, maldição inescapável. Nunca dei nada para ele ler. Durante anos, não nos vimos. Num jantar do Marcito para Saramago nos sentamos lado a lado. Ele se virou e disse: “Li seu Alice e Ulisses.” Silêncio. Alguém puxou conversa do outro lado, o assunto mudou. Daí a pouco, ele voltou, com outra frase: “É eruditíssimo.” Fiquei calada, quase em pânico, puxa, que horror, ele não gostou, e isso me importava tanto. Depois de mais uma garfada ele olhou pra mim e disse: “Mas é belíssimo. Uma novela rara.” Ganhei a noite. A paz. Só não ganhei coragem pra dizer tudo isso a ele. O mínimo que posso fazer agora é dizer de público. Posso não ter sido pupila, mas sou para sempre amorosa tiete do senhor Braga.”
Texto escrito pela Ana Maria para as comemorações do Centenário de Rubem Braga em 2013.
Mais sobre Ana Maria na França
Mais alguns links para programas e artigos que falaram sobre o lançamento de O Mar Nunca Transborda na França. A agenda foi muito intensa, mas as fotos mostram a alegria com a repercussão em torno da obra.
Un Brésil, trois écrivains (Um Brasil, três escritores) é um vídeo de poucos minutos em que Christian Tortel trata do questionamento do mundo encontrado na obra de Bernardo Carvalho, Luiz Ruffato e Ana Maria Machado.
O veículo suíco Le Temps publicou resenha do «La mer ne déborde jamais» (O Mar Nunca Transborda).




Já o francês Le Point publicou uma entrevistaonde Ana Maria onde ela responde sobre a relação da literatura brasileira com nossos vizinhos latinoamericanos, o papel do livro na sociedade brasileira e sobre o mercado editorial nacional.
Finalmente, Sophie Larmoyer conversou com a Ana em seu podcast no Europe1. A conversa aconteceu entre os minutos 14 e 32 do programa.